O lugar em Minas onde cada pedra conta um segredo do passado

Explore o Bicame de Pedra em Catas Altas, MG, um aqueduto do século XVIII. Entenda a engenharia e os segredos do ciclo do ouro

Escrito por:
Igor Souza

Publicado em:
07/11/2025

Na encosta da Serra do Caraça, a cidade de Catas Altas guarda um dos cenários mais impressionantes de Minas Gerais. Mas além da igreja matriz e das montanhas, uma estrutura de pedra corta a paisagem, contando uma história de ambição, engenharia e do poder transformador da água. Este é o Bicame de Pedra, um lugar onde cada bloco é uma página do passado, revelando os segredos de um tempo movido a ouro, muito além do que os olhos podem ver inicialmente.

  • A história do aqueduto de 1792.

  • A engenharia de pedra sobre pedra (pedra seca).

  • O elo vital entre Catas Altas e a mina de Gongo Soco.

Por que um aqueduto de pedra se tornou um ícone em Catas Altas?

Catas Altas é frequentemente definida pela imagem icônica de sua Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, com a majestosa Serra do Caraça ao fundo. É uma cena que captura a essência da fé e da natureza mineira. No entanto, a poucos quilômetros do centro, outro monumento, este de caráter industrial e secular, disputa a atenção: o Bicame de Pedra. Ele se tornou um ícone por representar a outra face daquele período colonial, a face da engenharia e da ambição desenfreada.

O Bicame não é um monumento vertical que busca o céu, como uma torre de igreja; é uma linha horizontal que domina a paisagem, uma cicatriz funcional que demonstra a intervenção humana na natureza em uma escala assombrosa para a época. É um testemunho do poder econômico e da capacidade técnica que o Ciclo do Ouro proporcionou. O Bicame de Pedra em Catas Altas, Minas Gerais, é a prova física de que, no século XVIII, a água era tão valiosa quanto o próprio metal precioso.

Uma obra-prima da engenharia hidráulica do século XVIII

Construído por volta de 1792, o Bicame de Pedra é um feito de engenharia notável. Trata-se de um aqueduto projetado com um propósito muito específico: transportar água captada nas nascentes da Serra do Caraça por quilômetros, vencendo vales e declives. Sua estrutura é o que mais fascina os historiadores e visitantes. Foi erguido majoritariamente com blocos de pedra (quartzito e canga) encaixados através da técnica de "pedra seca", ou seja, sem o uso de argamassa para unir a maior parte da estrutura.

Essa técnica exigia uma mão de obra extremamente qualificada, capaz de talhar e assentar cada pedra com precisão milimétrica para garantir a estabilidade e a impermeabilidade do canal. Em alguns trechos, o aqueduto se eleva do chão em arcos e colunas robustas, enquanto em outros, corre rente ao solo. O que vemos hoje é um trecho remanescente, tombado pelo IPHAN em 1950, que resiste ao tempo como um documento histórico tridimensional.

Qual era o "segredo" que a água transportada pelo Bicame revelava?

A água que corria pelo Bicame de Pedra não era destinada ao consumo humano ou à agricultura. Ela carregava um propósito muito mais lucrativo: era a força motriz para a extração de ouro em uma das minas mais ricas da capitania. O segredo que cada pedra deste aqueduto guarda é o da transição da mineração artesanal (a faiscação nos rios) para a mineração hidráulica em larga escala.

O aqueduto canalizava a água até o ponto exato onde ela era necessária para o "desmonte hidráulico". A água represada era liberada com força total sobre as encostas dos morros, lavando a terra e desnudando as formações rochosas que continham o ouro. O destino final dessa água era a mina do Gongo Soco, localizada no que hoje é o município de Barão de Cocais, mas cuja captação de água estava nas terras de Catas Altas.

A mineração hidráulica da época era um processo complexo:

  • Captação da água em alta altitude (Serra do Caraça).

  • Transporte por gravidade através de aquedutos.

  • Armazenamento em grandes reservatórios (caixas d'água).

  • Liberação controlada sobre o terreno (o "desmonte").

  • Lavagem do cascalho rico em ouro em canais (grupiaras).

Quem foi o homem por trás dessa obra monumental?

Uma estrutura dessa magnitude não foi uma obra pública da Coroa Portuguesa, mas sim um empreendimento privado. O Bicame de Pedra em Catas Altas, Minas Gerais, foi encomendado por um dos homens mais ricos e poderosos de seu tempo, João Batista Ferreira de Sousa Coutinho, o Barão de Catas Altas. Ele era o proprietário da mina do Gongo Soco, e o aqueduto foi a solução que ele encontrou para viabilizar a exploração de sua propriedade.

Isso nos revela muito sobre o poder concentrado nas mãos desses "senhores do ouro". O Barão de Catas Altas tinha capital suficiente para financiar uma obra de infraestrutura que hoje seria considerada de escala governamental. O Bicame é, portanto, um monumento ao poderio desses indivíduos, que moldavam a paisagem de acordo com suas necessidades econômicas, muitas vezes utilizando a mão de obra escravizada como alicerce literal e figurativo de suas fortunas.

O Bicame de Pedra como um monumento à memória

Hoje, o Bicame está silencioso. A água não corre mais por seu canal superior, que agora está tomado pela vegetação e pelo musgo. No entanto, ele fala mais alto do que nunca. Cada pedra, cortada e assentada com esforço humano, conta o segredo não apenas do ouro, mas da força de trabalho que tornou tudo isso possível. É impossível caminhar ao lado da estrutura sem refletir sobre as milhares de horas de trabalho, sob condições adversas, que foram necessárias para erguê-la.

O aqueduto é um monumento à resiliência, tanto da engenharia que o mantém de pé há mais de dois séculos, quanto da memória das pessoas que o construíram. Ele nos lembra que a riqueza de Minas Gerais foi erguida com uma mistura de genialidade técnica, ambição desmedida e um custo humano profundo, cujas vozes ecoam no silêncio da serra.

O legado do Bicame pode ser resumido em várias camadas:

  • Um marco da engenharia hidráulica colonial.

  • Um testemunho do poderio econômico dos "senhores do ouro".

  • Um memorial da força de trabalho, incluindo a escravizada.

  • Um exemplo da mineração industrial antes da Revolução Industrial.

  • Um patrimônio histórico e cultural tombado.

Como visitar o Bicame de Pedra em Catas Altas, Minas Gerais?

Visitar o Bicame de Pedra é uma experiência acessível e impactante. Os trechos mais preservados e conhecidos do aqueduto estão localizados às margens da estrada que liga Catas Altas a Santa Bárbara (passando pelo distrito de Brumal) e também próximo à estrada de acesso ao Santuário do Caraça. Não é um parque fechado; é um monumento que se integra à paisagem rural.

É possível parar o carro e caminhar ao lado da estrutura, tocar as pedras frias, observar a precisão dos encaixes e admirar a robustez dos arcos. A visita ao Bicame de Pedra em Catas Altas, Minas Gerais, é uma atividade que complementa perfeitamente um roteiro pela região, conectando a história do ouro com a beleza natural exuberante da Serra do Caraça, que era a fonte de toda essa engenharia.

+ Leia também: Entre fé e natureza: Catas Altas e Santa Bárbara despontam no turismo

A narrativa escrita na pedra

O Bicame de Pedra é, em essência, uma narrativa. Ele conta uma história mais complexa do que as igrejas barrocas, pois fala de indústria, de poder e da transformação radical da paisagem. Visitar Catas Altas e se limitar ao seu belo centro histórico é perder o capítulo que explica como a riqueza que financiou aquele barroco foi gerada.

Cada pedra daquele aqueduto é um lembrete silencioso de que a história de Minas Gerais foi escrita com engenhosidade, mas também com suor e força. O grande segredo que o Bicame revela não é o ouro que se foi, mas a memória do esforço humano que ficou, gravada de forma indelével na paisagem, esperando que o viajante moderno pare para tentar decifrá-la.

Sobre o autor:

Igor Souza é criador do Olhares por Minas, fotógrafo e especialista em turismo mineiro. Viaja por cidades históricas, cachoeiras e vilarejos, buscando contar as histórias que Minas tem a oferecer. Saiba mais sobre o autor clicando aqui.

Bicame de Pedra construido com pedras, ponto turistico em Catas Altas MG
Bicame de Pedra construido com pedras, ponto turistico em Catas Altas MG

Bicame de Pedra/MG - Foto: Igor Souza

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